Pesquisa realizada para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em junho deste ano, aponta que mais de 17 milhões (24,4%) de mulheres brasileiras foram vítimas de lesão corporal dolosa

“Em mulher não se bate nem com uma flor”. Cresci ouvindo esse jargão e, cá entre nós, por mais clichê que seja, essa frase popular envolve verdades incontestáveis: por mais delicadas que sejam as pétalas das flores, usá-las como arma contra qualquer pessoa expressa violência, raiva, ódios incontidos, repressão, opressão, desejo de submeter e, na raiz de tudo, desejo de ferir. São os espinhos que acompanham a violência contra as mulheres.

Nos últimos dias, a agressão física, moral e psicológica promovida por um DJ, contra a pessoa que deveria ser respeitada como sua parceira de vida, ganhou grande repercussão, principalmente nas diversas plataformas de redes sociais. Ato violento, execrável, abominável mesmo e que contém o agravante de ser pessoa pública, portanto um ‘influenciador’ potencial. Que exemplo sórdido! Nem mesmo as medidas legais promovidas contra o agressor – demissão do grupo de trabalho, prisão e, posteriormente, ajuizamento – são capazes de apaziguar os ânimos provocados por esse atentado a uma cidadã brasileira.

Mas esse não é um fato isolado. Pesquisa realizada para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em junho deste ano, aponta que mais de 17 milhões (24,4%) de mulheres brasileiras foram vítimas de lesão corporal dolosa, entre março e maio de 2020, o que reflete uma pequena queda no percentual do ano anterior (27,4%), porém longe de nos fazer felizes. Os números trazem ainda um novo alerta: o aumento da violência dentro de casa durante o período da pandemia, que subiu de 42% para 48,8%, com aumento significativo da participação nociva de companheiros, namorados e ex-companheiros. No Amazonas, o aumento de agressões contra a mulher no período da pandemia foi de 34%, com o registro de 6 mil casos a mais que os registrados em 2019, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM).

É assustador que, em pleno século XXI, a violência contra a mulher, seja no âmbito familiar ou extrafamiliar, ainda seja tolerada pelo poder público e ainda se apresente como o maior empecilho para a superação das desigualdades de gênero, porque subtrai ou impede os direitos e as liberdades de mulheres e meninas. Vinte e seis anos após a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim (a chamada plataforma de Beijing – cidade onde foi realizada a 4ª Conferência Mundial de Saúde sobre a Mulher, promovida pela ONU), alguns países, o Brasil entre eles, ainda naufragam na adoção de políticas públicas de empoderamento, proteção e intolerância à violência contra mulheres.

Temos avanços a registrar? Claro que sim! Seria impensável que não os tivéssemos. Hoje, as plataformas de coleta e divulgação de dados são mais densas, mais acessíveis, oferecendo informações para entender melhor o que acontece no país e no mundo. A criação das Delegacias da Mulher, a criminalização dos atos de violência, a Lei Maria da Penha e a criação de Juizados Especializados de combate à Violência Doméstica se revelaram medidas realmente positivas. Ainda há, entretanto, abismos enormes a serem superados. Não basta nos restringirmos aos aspectos legais. Precisam entrar em cena os aspectos culturais, sociais e econômicos, em um país como o Brasil, tão fortemente impregnado da fictícia superioridade masculina.

O machismo e o patriarcado, arcaicos e obsoletos, lamentavelmente, regem as relações sociais. É hora de dar um basta a essas figuras de museu. Afinal, elas são a fonte da desigualdade entre gêneros, com a violência perpetuando as iniquidades e impedindo o pleno desenvolvimento das mulheres em diversos aspectos da vida.

“O empoderamento e o avanço das mulheres, neles incluído o direito à liberdade de consciência, religião e livre pensamento, contribuindo assim para atender às necessidades morais, éticas, espirituais e intelectuais de homens e mulheres, individual ou coletivamente, e, desse modo, lhes garantindo a possibilidade de realizarem todo o seu potencial na sociedade, e construírem suas vidas de acordo com suas próprias aspirações”, diz o 12º compromisso dos países signatários da Plataforma de Beijing.

Estamos muito longe de realizar esse compromisso. Um avanço será jamais nos omitirmos, cruzar os braços e olhar para o outro lado, como fez o cidadão que presenciou a cena de violência praticada pelo DJ contra sua companheira. Muito pelo contrário, precisamos meter a colher, tomar partido, denunciar, cobrar, criar agendas para a definição de novas políticas públicas e cobrar imediatas implementações. Exercer o direito de fiscalizar o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, para que agilizem conjuntos de legislações mais condizentes com o século 21 e cobrar suas efetivas aplicações.

Comecei esse artigo utilizando uma frase popular, de autoria desconhecida – muito utilizada nas redes sociais nos últimos dias: em briga de marido e mulher, a gente defende a mulher!

*Diplomata, é diretor do Núcleo de Educação Política e Renovação do Centro Preparatório Jurídico (CPJUR), foi deputado federal e senador, líder por duas vezes do governo Fernando Henrique, ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Conselheiro da República, líder das oposições no Senado por oito anos seguidos, três vezes prefeito da capital da Amazônia.

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